Por Péricles Figueiredo
A fé, conforme demonstrada na Bíblia, ensejou os seguintes comentários de Jesus Cristo: “Então, entrando Ele no barco, seus discípulos o seguiram. E eis que sobreveio no mar uma grande tempestade, de sorte que o barco era varrido pelas ondas. Entretanto, Jesus dormia. Mas os discípulos vieram acordá-lo, clamando: Senhor, salva-nos! Perecemos! Perguntou-lhes, então Jesus: Por que sois tímidos, homens de pequena fé? E, levantando-se, repreendeu os ventos e o mar; e fez-se grande bonança.” (Mateus 8:23-26); e, em outra ocasião: “Partindo Jesus dali, retirou-se para os lados de Tiro e Sidom. E eis que uma mulher cananéia, que viera daquelas regiões, clamava: Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim! Minha filha está horrivelmente endemoninhada. Ele, porém, não lhe respondeu palavra. E os seus discípulos, aproximando-se, rogaram-lhe: Despede-a, pois vem clamando atrás de nós. Mas Jesus respondeu: Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. Ela, porém, veio e o adorou, dizendo: Senhor, socorre-me! Então, Ele, respondendo, disse: Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos. Ela, contudo, replicou: Sim, Senhor, porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos. Então, lhe disse Jesus: Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres. E, desde aquele momento, sua filha ficou sã.” (Mateus 15:21-28).
No primeiro caso Jesus questiona seus discípulos – todos juntos, e que o conheciam pessoalmente, mas com medo – pela pequena fé demonstrada; no segundo caso, Jesus exclama positivamente que grande é aquela fé demonstrada por uma mulher cananéia – sozinha, e que não O conhecia pessoalmente, mas determinada – no contexto, duplamente discriminada, pelo fato de ser mulher, e por pertencer a um povo historicamente desprezado pelos judeus.
Entre pequena e grande existe a possibilidade de crescer na fé: “Paulo, Silvano e Timóteo, à Igreja dos tessalonicenses… Irmãos, cumpre-nos dar sempre graças a Deus no tocante a vós outros, como é justo, pois a vossa fé cresce sobremaneira, e o vosso mútuo amor de uns para com os outros vai aumentando.” (II Tessalonicenses 1:3). E este crescimento ocorre num ambiente de batalha: “Amados, quando empregava toda a diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos.” (Judas 1:3).
No mundo de hoje existe muita credulidade e superstição que não é fé em Deus. Até no ambiente religioso, algumas atitudes são apenas aparências de fé, uma forma de conhecimento com menor grau de certeza, uma mera submissão ao ensino de uma igreja, uma obediência cega a uma autoridade religiosa. Por outro lado há muitos relacionamentos de crença, confiança, e formas sutis de obediência, a outros deuses e – particularmente no mundo atual – é possível identificar uma avassaladora inclinação para com o deus dinheiro. Por vezes somos até tentados a seguir os passos para assegurar a prosperidade, em paralelo com nossas atividades religiosas. Afinal, diz o ditado popular, “deus ajuda a quem se ajuda…” (convido-os a ler postagem recente sobre dinheiro em periclesdiacono.blogspot.com).
Como é a fé cristã? A fé cristã apóia-se em três pilares, e a falta de qualquer um deles, implica distorção da fé verdadeira: há uma atividade de crença, um saber a respeito (a cristandade baseia-se no que os cristãos entendem ser uma revelação divina). Há um elemento emocional (ainda que a fé não brote de um turbilhão de sentimentos, esta dimensão afetiva da fé cristã assume a forma de uma relação de confiança num Deus pessoal que salva em Jesus Cristo; o chamamento ao Reino de Deus é um convite a uma relação de irrestrita confiança na fidelidade de Deus e no poder de sua graça salvadora). E há um fazer a vontade de Deus, pois não se conhece Deus a menos que se lhe faça a vontade, e é apenas no fazer que se conhece verdadeiramente a Deus .
A fé cristã é essencialmente uma vida vivida em resposta ao chamado para o Reino de Deus em Jesus Cristo. Esta vida, desenvolve-se a passo a passo de fé: “quem invoca sua fé ou falta de fé como desculpa de sua desobediência ao chamado de Jesus, ao tal Ele diz: sê primeiro obediente, deixa o que te prende, abandona o que te separa da vontade de Deus! Não a terás enquanto permaneceres na desobediência, enquanto não te decidires a dar o passo de fé. Nem dirás: eu já tenho fé e não preciso dar um passo de fé. Não a terás enquanto não deres este passo e porque não o deste, antes te refugias em descrença por trás da aura de uma fé humilde. Se crês, dá o passo da fé. Ele conduz a Cristo. Se não crês, dá-o igualmente, pois a ordem é essa: nada se te pergunta acerca da tua fé ou da falta de fé. Antes, o que se te ordena é a obediência e de a pores em prática”. A Bíblia registra dois passos que foram críticos para seus autores: o ladrão na cruz (um único passo de fé definiu sua vida eterna com Deus) e Judas, ou a impossibilidade de dar um passo de fé em Deus, e, ao mesmo tempo, de fé no deus dinheiro (um passo final em falso definiu sua vida eterna no Inferno). A natureza desses passos de fé, é sui generis: não se consegue ensiná-los na teoria, e só se aprende dando o passo de fé.
Um caso extremo prova a fé do patriarca Abraão no chamado de Deus para sacrificar seu filho: “Raiava a manhã. Abraão ergueu-se, abraçou Sara, companheira de sua velhice, e Sara beijou a Isaac, que a livrara do escárnio e era o seu orgulho e esperança para todas as gerações futuras. Andaram em silêncio. Abraão manteve o olhar obstinadamente fixo no chão até o quarto dia. Somente então ergueu os olhos e distinguindo no horizonte a montanha de Morija, tornou a baixá-los. Abraão fez os preparativos do sacrifício: silenciosamente preparou o holocausto e atou Isaac. Porém quando se voltou para sacar a faca, observou Isaac que a mão de seu pai estava crispada de desespero, que um arrepio lhe sacudia o corpo e entretanto Abraão sacou a faca. Foi então que enxergou o carneiro que Deus providenciara. Sacrificou-o e tornou à casa… Sara atirou-se ao encontro deles. Deste dia em diante Abraão envelheceu; não conseguia esquecer daquilo que Deus exigira dele…“.
Esta é a transcrição de uma passagem do livro “Temor e Tremor” de Kierkegaard, filósofo de referência do existencialismo cristão, porque em nossa leitura corrida da passagem bíblica original, talvez deixemos passar desapercebida a possível intensa luta íntima deste que foi considerado ícone e pai da fé, fonte de inspiração em nossos chamados pessoais, infinitamente menos exigentes.