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OS DONS ESPIRITUAIS E O AMOR
Alta madrugada no atelier de arquitetura, subitamente o silêncio dominante foi rompido por vozes em grande algaravia, discutindo acidamente. Eram os equipamentos de trabalho do arquiteto em sua estação gráfica que tensa e ruidosamente debatiam suas diferenças. O elegante monitor havia assumido a liderança da polêmica, mas os outros disseram em alta voz que devia calar-se, porque sempre era ele quem queria aparecer, e o tempo todo os olhos estavam voltados para ele, como se os outros fossem invisíveis! Com muita má vontade o monitor acabou concordando, mas exigiu que a CPU também ficasse calada, pois vivia se vangloriando de conter as partes mais importantes do computador, além dos programas sem os quais nada funcionaria. A CPU protestou o quanto pode, mas ao fim e ao cabo aquiesceu, com a condição de que o mouse também não abrisse a boca, alegando que embora fosse pequeno, incomodava demais, era muito irrequieto, e o arquiteto segurava-o o tempo todo, sem largá-lo um minuto que fosse, o que demonstrava a sua predileção, assim relegando os outros a um segundo plano.
Já era dia claro e ainda estavam envolvidos na querela que parecia infindável, quando o arquiteto abriu a porta do atelier, sentou-se e ligou a CPU, fixou os olhos no monitor e passou a guiar com destreza o mouse. Ao fim do dia era possível ver o resultado de muitas horas de trabalho: um belo projeto que brotara aparentemente do nada, mas que era produto da ação conjunta do profissional dirigindo sua orquestra digital. A noite chegou, e quando o atelier novamente mergulhou em silêncio a discussão recomeçou. A mesa de trabalho então pediu a palavra dizendo: “Amigos, hoje só nos preocupamos em apontar os defeitos uns dos outros, mas o arquiteto não trabalha com eles, e sim com nossos talentos e dons. Por isso proponho que nos limitemos a empregá-los para construir, com amor, as obras que o arquiteto criar, suportando com indulgência as imperfeições que todos temos, e que nada constroem”. A proposta foi aceita por unanimidade, e todos unidos no mesmo propósito se sentiram então como uma verdadeira equipe, pronta a produzir obras de qualidade nas mãos do hábil profissional!
Isto nos remete ao que Paulo, em 1 Coríntios 12 ensina sobre a variedade de dons e no capítulo 13 sobre o caminho sobremodo excelente do amor. Em 12.27-31 assim reflete: “Ora, vós sois corpo de Cristo; e, individualmente, membros desse corpo. A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres; depois, operadores de milagres; depois, dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas. Porventura, são todos apóstolos? Ou, todos profetas? São todos mestres? Ou, operadores de milagres? Têm todos dons de curar? Falam todos em outras línguas? Interpretam-nas todos? Entretanto, procurai, com zelo, os melhores dons. E eu passo a mostrar-vos ainda um caminho sobremodo excelente”.
E então, em sequência, na passagem que está em 13.1-7 conclui decisivamente: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará. O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.
O apóstolo aqui pondera que embora os dons de ensino – apóstolos, profetas, mestres – sejam mais importantes do que os dons espetaculares – milagres, curas, línguas, ensina que o amor deve prevalecer, pois é ainda mais importante do que os dons espirituais. Mesmo que alguém fale línguas angelicais, sem amor isso é inútil; ainda que conheça todos os mistérios e toda a ciência, sem amor isto não significa nada; mesmo que dê tudo aos pobres e seja queimado numa fogueira, sem amor tudo é vão.
E Paulo acrescenta conclusivamente no trecho que está em 13.8-13: “O amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará; porque, em parte, conhecemos e, em parte, profetizamos. Quando, porém, vier o que é perfeito, então, o que é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino. Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face. Agora, conheço em parte; então, conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior destes é o amor”.
Ou seja, os dons espirituais são temporários, mas quando o perfeito vier – numa referência à segunda vinda de Cristo – eles deixarão de existir, da mesma forma como características infantis são descartadas quando a idade adulta é atingida. Como todas as capacidades vêm de Deus, não podemos ser arrogantes por causa das nossas, mas precisamos, isto sim, valorizar cada membro do Corpo de Cristo, lembrando que sem amor o nosso serviço espiritual é infrutífero.
É também importante termos em mente a distinção entre talento natural e dom: ambos vêm de Deus, o primeiro após o nascimento físico, mas o segundo só após o novo nascimento; o primeiro toca o emocional humano, porém o segundo faz vibrar o espírito humano; o primeiro é desenvolvido por meio de disciplina pessoal, enquanto que o segundo expande-se pelo agir do Espírito Santo. E como afirma o apóstolo, os dons só fazem sentido se voltados à edificação da Obra de Deus neste mundo, ensinando em Efésios 4.11-12 que Deus para isso “… concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo”.
Contudo, para que os objetivos divinos sejam alcançados, é mister que:
O Corpo Funcione Solidariamente como Equipe
Da mesma forma como nosso corpo possui vários membros que agem harmonicamente integrados, cada um executando a função vital para a qual foi criado por Deus, da mesma forma deve ser no Corpo de Cristo, onde dependemos uns dos outros, numa mutualidade fraterna potencializada pela diversidade de dons.
O Amor Predomine
É oportuno recordarmos que em 1 Coríntios 13.1-10, dissertando sobre os dons, o apóstolo funde-os com o amor que vem de Deus, o que mostra que para o cristão usar apropriadamente os dons que lhe foram concedidos, obrigatoriamente deve fazê-lo com amor. Neste mesmo sentido, John Stott afirma que “A verdade se torna ríspida se não for equilibrada pelo amor; o amor torna-se frouxidão se não for fortalecido pela verdade. O apóstolo nos exorta a mantermos os dois juntos, o que não deve ser difícil para crentes cheios do Espírito Santo, visto que Ele mesmo é o Espírito da verdade, e o Seu primeiro fruto é o amor.”
A Soberania de Deus Seja Respeitada
Os dons espirituais são concedidos soberanamente por Deus para um propósito que só Ele conhece em sua plenitude. Por isso, como decorrência, ao cristão não é dado escolher o dom ou os dons que deseja exercitar. Paulo diz em Filipenses 2.13 que “… Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”, indicando que Ele distribui tanto os dons quanto a fé suficiente e necessária para o seu exercício pelo crente. Agir totalmente submissos à Sua soberana vontade, pois, é pré-requisito essencial para que sejamos bem-sucedidos na Sua Obra!
Os dons espirituais são uma excelsa expressão da soberania de Deus e do Seu amor por nós. Nada mais justo, portanto, que empreguemos os dons a nós concedidos com amor ao próximo, sem o que estaremos tendo uma atitude enganosa e desvirtuada do propósito com o qual Deus os criou, e que a nós soberana, graciosa e amorosamente outorgou.
Soberano Senhor, Deus e Pai, ensina-nos a exercitar os dons que nos concedeste, fazendo-nos compreender que o propósito com que o fizeste é o serviço a Ti, visando exclusivamente a Tua glória, a edificação dos irmãos e a salvação dos perdidos. Permita, Senhor Amado, que o amor ágape permeie sempre o emprego destas dádivas maravilhosas para a construção do Teu reino. Em nome de Cristo Jesus oramos agradecidos. Amém.
23 de março de 2024
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