Injustiça (1)
Diariamente, pelos noticiários, pelos jornais, pela TV, pela internet, tomamos conhecimento dos dramas, das tragédias que acometem as pessoas de todos os lugares, raças, idades e condições sociais. Como aquele pai, trabalhador honesto e dedicado, que faz tudo certo na vida, ao pensar naqueles que enriquecem desonestamente, sem nunca terem trabalhado, se pergunta: “Vale a pena agir corretamente e passar por tantas dificuldades?” Uma mãe desesperada abraça o corpo inerte e ensanguentado de seu pequeno filho, morto por uma bomba terrorista, e entre muitas lágrimas de dor pergunta: “O que esta criança inocente fez para merecer isto? Por que ele?” Uma jovem viúva desconsolada, ao lado da tumba que acabou de receber o corpo do marido, morto por um motorista alcoolizado, abraça seus três filhos pequenos e soluça de dor: “Não é justo. Por que meu marido, que sempre respeitou as leis, está morto e aquele motorista, ébrio reincidente, continua vivo?” Fora do tribunal, o homem em lágrimas e aos gritos de revolta protesta indignado porque o estuprador e assassino de sua única filha acaba de ser solto por uma tecnicalidade espertamente explorada pelo advogado de defesa.
Todos nós que em algum momento temos refletido sobre como a vida às vezes parece injusta, por certo nos deparamos com situações análogas, e ficamos sem saber o que dizer às pessoas afetadas por tragédias inexplicáveis.
Asafe, que no hebraico significa “ajuntador”, tem este nome aparentemente como decorrência da função que exerceu ao liderar muitas pessoas nos serviços de canto na casa do Senhor. Em 1 Crônicas 16.4-5 lemos que “(Davi) Designou dentre os levitas os que haviam de ministrar diante da arca do Senhor, e celebrar, e louvar, e exaltar o Senhor, Deus de Israel, a saber, Asafe, o chefe, Zacarias, o segundo …” Que grande responsabilidade! O rei havia escolhido Asafe como líder de 38.000 levitas porque conhecia o caráter, o compromisso, a integridade e o seu zelo para com Deus no desempenho das suas funções. Ele, portanto, era um exemplo, e sua escolha representava a maior responsabilidade que um homem podia ter, que era ministrar na presença do Deus vivo. O Salmo 73, de sua autoria, chama a nossa atenção pela honestidade e a transparência com que o autor se expressa. Neste salmo, que tem o título de O problema da prosperidade dos maus, resumidamente o salmista questiona: “Por que isto está acontecendo comigo? Confiei no Deus de nossos pais, tentei permanecer fiel a Ele, tentei fazer as escolhas certas, mas estou sendo esmagado por problemas, enquanto pessoas que agem incorretamente e O desdenham, prosperam! Isto não é justo!”
Uma das razões pelas quais Asafe sentiu-se tão injustiçado, foi porque no antigo Israel, os judeus viam a vida sob a ótica de uma espécie de lei não escrita de retribuição, que pressupunha que quem fazia o bem receberia nesta vida recompensa equivalente à sua bondade, enquanto que o ímpio, por sua vez, seria punido na medida de seus atos maus. Até nos dias de hoje muita gente ainda tem este conceito, e assim raciocinaram, por exemplo, os amigos de Jó, que o acusavam de esconder os pecados que explicariam seu sofrimento. O erro, porém, era que eles consideravam que a justiça divina seria a única explicação para as circunstâncias presentes, boas ou más. Este conceito ajuda a desvendar a questão que constitui-se no pano de fundo do Salmo 73: por que pessoas más parecem ser abençoadas, enquanto as boas dão a impressão de algumas vezes serem amaldiçoadas?
Quando Asafe compôs o Salmo 73, não estava se referindo a nenhuma outra pessoa além de si mesmo, pois que ele próprio passara por aqueles questionamentos e dúvidas. Ele cria em Deus e na Sua bondade e justiça, mas o que havia experimentado na vida conflitava frontalmente com suas crenças, e ele se pôs em busca das respostas que o fizessem recuperar a fé e superar a dor pessoal e a decepção.
Alguém disse que “a vida deve ser vivida olhando para a frente, mas só a compreendemos olhando para trás”. Isto é, muitas vezes só temos compreensão mais clara da nossa própria vida quando vemos através de um espelho retrovisor os marcos que a balizaram. Olhando para trás podemos visualizar os eventos que nos trouxeram até onde estamos, geralmente de uma forma que jamais imaginaríamos enquanto aqueles fatos se desenrolavam. Asafe havia aprendido a valorizar a visão retrospectiva, então olhou para trás, para uma época de sua vida em que esteve cheio de dúvidas, desespero e dor pessoal, quando questionava então a bondade e a justiça de Deus. Apesar disto – certamente antes de sua crise de fé – ele escreveu no verso 1: “Com efeito, Deus é bom para com Israel, para com os de coração limpo.” Lembremos que o ponto central das dificuldades de Asafe era que os justos muitas vezes pareciam não ser abençoados, mas este verso inicial reflete um momento em que ele ainda acreditava na recompensa bondosa de Deus para eles.
A seguir, no verso 2, ele passa a despir seu coração como quem descasca uma cebola, camada após camada, verso após verso: “Quanto a mim, porém, quase me resvalaram os pés; pouco faltou para que se desviassem os meus passos.” Quando o sofrimento de Asafe estava no auge, suas queixas até pareciam justificadas, mas agora ele constatava o que realmente eram: uma tentação perigosa para levá-lo a desertar de Deus.
Então neste momento ele fala – não apenas com honestidade e transparência, mas também com objetividade – sobre os pensamentos que anteriormente o afligiram (v. 3): “Pois eu invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos perversos.” A franqueza de Asafe, sua auto-exposição íntima é um desafio para sermos mais autênticos e honestos conosco mesmos e com Deus! O que Asafe estava confessando? Aquilo que muitas vezes sentimos, mas poucas vezes reconhecemos: que há momentos depressivos na vida em que chegamos até mesmo a invejar a prosperidade daqueles que não conhecem a Deus. Asafe via muitas injustiças ao seu redor, o que despedaçava sua alma, e então fez um desabafo nos versos de 4 a 9 sobre aqueles que pareciam levar vantagem em tudo sem ter qualquer merecimento, e assim protestou no verso 4: ”Para eles não há preocupações, o seu corpo é sadio e nédio”, isto é, eles não passam por sofrimentos, morrem satisfeitos, desfrutando plenamente da vida, a cada passo do seu caminho.
No verso 5: “Não partilham das canseiras dos mortais, nem são afligidos como os outros homens” . Os que prosperam na maldade parecem imunes às dificuldades normais, às lutas e aos trabalhos árduos da vida, os problemas não os atingem, e estão livres dos fardos comuns a todos.
No verso 6: “Daí, a soberba que os cinge como um colar, e a violência que os envolve como manto”. Asafe havia sido ensinado que as pessoas que rejeitam a Deus seriam punidas por suas escolhas e atitudes, mas ao observar a vida, percebeu que, ao contrário, elas pareciam ser sempre honradas e recompensadas, e sua maldade era premiada com o aumento de suas riquezas.
No verso 7: “Os olhos saltam-lhes da gordura; do coração brotam-lhes fantasias”. Asafe viu que em meio às suas manifestações exteriores de riqueza, as maldades dos ímpios eram inimagináveis, e que ainda ficavam maquinando mais perversidades.
Nos versos 8-9: “Motejam e falam maliciosamente; da opressão falam com altivez. Contra os céus desandam a boca, e a sua língua percorre a terra”. Suas palavras estão cheias de zombarias, orgulho e arrogância, dirigidos não apenas àquelas pessoas que valorizam mais o caráter que as riquezas materiais, mas principalmente a Deus.
E o que mais incomodava Asafe com relação à prosperidade dos ímpios, era a atitude deles para com o Senhor, e então numa crítica ao povo de Israel, que via neles exemplos a serem seguidos, afirma e questiona nos versos 10-11: “Por isso, o seu povo se volta para eles e os tem por fonte de que bebe a largos sorvos. E diz: Como sabe Deus? Acaso, há conhecimento no Altíssimo?” Eles parecem não se importar nem se preocupar com o amanhã, pois para eles a vida é o aqui e o agora, e o agora parece ser eterno. Acham que estão protegidos das dores normais da vida, e supõem-se invulneráveis a qualquer punição divina por seus pecados.
Por isso, Asafe vendo a riqueza e a felicidade das pessoas irreverentes, presunçosas e egocêntricas, chegou a uma conclusão frustrante: apesar de todos os pecados que cometem e de viverem exclusivamente para si mesmos, eles prosperam!, e diz no verso 12: “Eis que são estes os ímpios; e, sempre tranqüilos, aumentam suas riquezas”.
A frustração de Asafe com as desigualdades da vida era um problema, mas a maneira como ele reagiu a estas injustiças tornou-se um problema ainda maior, quando passou a questionar no verso 13, vale a pena tentar viver para Deus?: “Com efeito, inutilmente conservei puro o coração e lavei as mãos na inocência”. Assim ele está colocando em dúvida o valor de sua confiança em Deus, e após ter vivido toda a sua vida debaixo de um propósito de integridade pessoal e de fidelidade ao Senhor, estava prestes a desistir e desertar, supondo que Deus não estava mais no controle.
E então no verso 14 lamenta-se na sua dor: “Pois de contínuo sou afligido e cada manhã, castigado”. Afinal, qual tinha sido sua recompensa pelo compromisso espiritual que sempre honrara, a não ser tormentos e castigos?
Continua…
ieda amaral egg silveira
12 de agosto de 2013 at 9:41Nanny e Winston:
Embora conhecendo o final do Salmo 73, fico aguardando seus comentários sempre inspirados e inspiradores. Vocês bem poderiam voltar pra nossa classe da EBD, onde estamos estudando o livro “O Deus que eu não entendo”, de Christopher Wright. O objetivo é tentar compreender algumas questões difíceis da fé cristã, aquelas que são possíveis de entender quando nos aprofundamos na comunhão com Deus e Sua Palavra. Quanto as que não nos são reveladas no presente, que não limitem a nossa fé, confiança e amor ao nosso soberano Deus!
Uma boa semana pra vocês, na Paz do Senhor!
Nanny & Winston
12 de agosto de 2013 at 16:28Querida Ieda,
Este livro é muito interessante, instigante e desafiador. Foi uma leitura muito proveitosa a que tivemos. Deixa claro que o Senhor nos revelou através de Sua Palavra somente os conhecimentos que são indispensáveis para nós aqui e agora, e assim permite-nos encontrar ali tudo o que realmente precisamos para servi-Lo na vida terreal e para preparamo-nos para a vida eterna. Paulo em 2 Coríntios 12.2,4 nos dá uma “dica” sobre isto: “Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos, foi arrebatado até ao terceiro céu (…) e ouviu palavras inefáveis, as quais não é lícito ao homem referir.” O mais Ele sabe quando, e se, poderá revelar-nos…
Que Deus continue a abençoá-la sempre mais.