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ASAFE E O SALMO 73
Constantemente, pela TV, pela internet, pelas mídias sociais, tomamos conhecimento dos dramas, das tragédias que acometem pessoas de todos os lugares, raças, idades e condições sociais, levando-nos a refletir como a vida às vezes parece injusta, e o Salmo 73 de autoria de Asafe, nos oferece uma abordagem emblemática da questão, antes de mais nada atraindo a nossa atenção pela honestidade e a transparência com que o autor se expressa.
Neste salmo, que tem o título de O problema da prosperidade dos maus, resumidamente o salmista questiona: “Por que isto está acontecendo comigo? Confiei no Deus de nossos pais, tentei permanecer fiel a Ele, tentei fazer as escolhas certas, mas estou sendo esmagado por problemas, enquanto pessoas que agem incorretamente e O desdenham, prosperam! Isto não é justo!”
Uma das razões pelas quais Asafe sentiu-se tão injustiçado, foi porque no antigo Israel os judeus viam a vida sob a ótica de uma espécie de lei não escrita de retribuição, que pressupunha que quem fazia o bem recebia recompensa equivalente à sua bondade, enquanto que o ímpio seria punido na medida de seus atos maus. Assim raciocinaram, por exemplo, os amigos de Jó, que o acusavam de esconder os pecados que explicariam seu sofrimento. O erro, porém, era que eles consideravam que a justiça divina seria a única explicação para as circunstâncias presentes, boas ou más. Este conceito ajuda a desvendar a questão que constitui-se no pano de fundo do Salmo 73: por que pessoas más parecem ser abençoadas, enquanto as boas dão a impressão de algumas vezes serem até amaldiçoadas?
Quando Asafe compôs o Salmo 73, não estava se referindo a nenhuma outra pessoa além dele mesmo, na verdade ele próprio passara por aqueles questionamentos e dúvidas. Ele cria em Deus e na Sua bondade e justiça, mas o que havia experimentado na vida conflitava frontalmente com as suas crenças, e ele se pôs a buscar respostas que o fizessem recuperar a fé e superar a dor pessoal e a decepção que sentia.
Alguém certa vez disse que “a vida deve ser vivida olhando para a frente, mas só a compreendemos olhando para trás”. Isto é, muitas vezes só temos compreensão mais clara da nossa própria vida quando vemos os marcos que a compuseram através de uma espécie de espelho retrovisor. Olhando para trás podemos visualizar os eventos que nos trouxeram até onde estamos, geralmente de uma forma que jamais imaginaríamos enquanto aqueles acontecimentos se desenrolavam.
Asafe havia aprendido a valorizar essa visão retrospectiva, então olhou para trás, para uma época de sua vida em que esteve cheio de dúvidas, desespero e dor pessoal, quando questionava então a bondade e a justiça de Deus. Apesar disso, certamente antes de sua crise de fé, ele escreveu no verso 1: “Com efeito, Deus é bom para com Israel, para com os de coração limpo.” Lembremos que o ponto central das dificuldades de Asafe era que os justos pareciam não ser abençoados, mas esse verso inicial parece refletir um momento em que ele ainda acreditava na recompensa bondosa de Deus para os justos, os de coração limpo.
A seguir, no verso 2, ele passa a despir seu coração como quem descasca uma cebola, camada após camada, verso após verso: “Quanto a mim, porém, quase me resvalaram os pés; pouco faltou para que se desviassem os meus passos.” Quando o sofrimento de Asafe estava no auge, suas queixas até pareciam justificadas, mas agora ele constatava o que realmente eram: uma tentação perigosa para levá-lo a desertar de Deus.
Então no verso 3 ele pondera, não apenas com honestidade e transparência, mas também com mais objetividade, sobre os pensamentos que anteriormente o afligiram: “Pois eu invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos perversos.” O que Asafe estava confessando? Aquilo que muitas vezes sentimos, mas poucas vezes reconhecemos: que há momentos na vida em que chegamos até mesmo a invejar a prosperidade daqueles que não conhecem a Deus.
Asafe via muitas injustiças ao seu redor, o que despedaçava a sua alma, e então fez um desabafo nos versos de 4 a 9 sobre aqueles que pareciam levar vantagem em tudo sem ter qualquer merecimento, e assim seu protesto permeou cada versículo:
No 4: ”Para eles não há preocupações, o seu corpo é sadio e nédio”, isto é, eles não passam por sofrimentos, morrem satisfeitos, desfrutando plenamente da vida a cada passo do seu caminho.
No 5: “Não partilham das canseiras dos mortais, nem são afligidos como os outros homens” . Os que prosperam na maldade parecem imunes às dificuldades normais, às lutas e aos trabalhos árduos da vida, os problemas não os atingem, e estão livres dos fardos comuns a todos.
No 6: “Daí, a soberba que os cinge como um colar, e a violência que os envolve como manto”. Asafe havia sido ensinado que as pessoas que rejeitam a Deus seriam punidas por suas escolhas e atitudes, mas ao observar a vida, percebeu que, ao contrário, elas pareciam ser sempre honradas e recompensadas, e a sua maldade era premiada com o aumento de suas riquezas.
No 7: “Os olhos saltam-lhes da gordura; do coração brotam-lhes fantasias”. Ele viu que em meio às suas manifestações exteriores de riqueza, as maldades dos ímpios eram inimagináveis, e que ainda ficavam maquinando mais perversidades.
Nos versos 8-9: “Motejam e falam maliciosamente; da opressão falam com altivez. Contra os céus desandam a boca, e a sua língua percorre a terra”, ou seja, suas palavras estão cheias de zombaria e arrogância, dirigidas não apenas àquelas pessoas que valorizam mais o caráter que as riquezas materiais, mas principalmente a Deus.
Sim, o que mais incomodava Asafe com relação à prosperidade dos ímpios era a atitude deles para com Deus, e então ele, numa crítica ao povo de Israel, que via neles exemplos a serem seguidos, diz e questiona nos versos 10-11: “Por isso, o seu povo se volta para eles e os tem por fonte de que bebe a largos sorvos. E diz: Como sabe Deus? Acaso, há conhecimento no Altíssimo?” Eles pareciam não se importar nem se preocupar com o amanhã, pois para eles a vida era o aqui e o agora, e o agora aparentava ser eterno e se achavam protegidos das dores normais da vida, supondo-se imunes a qualquer correção divina por seus pecados.
Por isso, Asafe vendo a riqueza e a felicidade das pessoas irreverentes e egocêntricas, chegou à frustrante conclusão no verso 12 de que, apesar de todos os pecados que cometiam e de viverem exclusivamente para si mesmos, eles prosperavam!: “Eis que são estes os ímpios; e, sempre tranquilos, aumentam suas riquezas”.
A frustração de Asafe com as desigualdades da vida era um problema, mas a maneira como ele reagiu a estas injustiças tornou-se um problema ainda maior, quando passou a questionar no verso 13 se valia a pena viver para Deus: “Com efeito, inutilmente conservei puro o coração e lavei as mãos na inocência”. Assim ele está colocando em dúvida o valor da sua confiança em Deus, e após ter vivido toda a sua vida sob um propósito de integridade pessoal e de fidelidade ao Senhor, estava prestes a desistir e desertar, achando que o Senhor não estava mais no controle.
Então no verso 14 lamenta-se na sua dor: “Pois de contínuo sou afligido e cada manhã, castigado”. Afinal, qual tinha sido sua recompensa pelo compromisso espiritual que sempre honrara, a não ser tormentos e castigos?
Mas subitamente algo aconteceu, sua compreensão mudou, e uma nova percepção da vida tomou o lugar da visão que tivera até então. Antes de ousar desaprovar o que Deus estava fazendo, parou. Prestes a lançar fora toda a sua fé e esperança, abandonando a Deus, lembrou-se de sua posição de responsabilidade pela liderança que exercia. Como músico principal de Davi, compositor de hinos e profeta, era um homem de grande influência espiritual, e a isso correspondia o enorme peso de decisões e atitudes suas que poderiam impactar as vidas de muitas pessoas.
Neste momento Asafe revê sua posição, dizendo no verso 15: “Se eu pensara em falar tais palavras, já aí teria traído a geração de teus filhos”. Ele havia se refreado, não deixando transparecer tudo o que ia em seu coração, para evitar que isto causasse dano irreparável e grande desilusão ao povo de Deus. Que grande lição! Todos temos uma profunda responsabilidade uns para com os outros, e é esta percepção que deve nos guiar e ajudar a controlar nossa eventual indignação, ira e sentimento de injustiça.
O que ele fez então? Escolheu outro caminho, revelando muita coragem e desprendimento, preferindo sofrer em silêncio, lutando contra a injustiça da vida e a sua própria fraqueza na fé, porém confessando no verso 16: “Em só refletir para compreender isso, achei mui pesada tarefa para mim”.
A vida está repleta de perguntas cujas respostas não conseguiremos encontrar até que entremos na presença do próprio Deus, como Asafe confessa no verso 17: “até que entrei no santuário de Deus e atinei com o fim deles”. Assim, finalmente ele encontrou uma nova perspectiva e renovada compreensão da vida, pois na presença de Deus tudo muda.
O comentarista bíblico Roy Clemens escreveu: “A adoração coloca Deus no centro de nossa visão. Somente quando Deus está no centro de nossa visão vemos as coisas como realmente são.” Deus não pode ser objeto de especulação, mas sim de adoração, e a partir desta nova postura – desta perspectiva vertical, ao invés da perspectiva horizontal que tinha nos versos 2 e 3 – Asafe pôde aprender algumas lições eternas descritas nos versos 18-20:
No 18, ele diz sobre os maus: “Tu certamente os pões em lugares escorregadios e os fazes cair na destruição”. Enquanto, na ótica do mundo, aquelas pessoas pareciam totalmente seguras, na perspectiva de Deus elas encontravam-se em terreno completamente instável, em areia movediça, por isso Asafe deixou de invejá-las.
Então exclama no 19: “Como ficam de súbito assolados, totalmente aniquilados de terror!”, com isto afirmando que estes ímpios prósperos tinham não apenas um julgamento divino certo os aguardando, mas também não saberiam quando isto iria acontecer, como sucedeu nos tempos de Noé.
No verso 20, Asafe profetiza que no tempo e na sabedoria de Deus, a lei da retribuição iria prevalecer: “Como ao sonho, quando se acorda, assim, ó Senhor, ao despertares, desprezarás a imagem deles”. Isto quer dizer que, quando Deus cuidar deles, o julgamento será de inevitável culpa e castigo. O erro anterior do salmista foi pretender que a justiça de Deus se fizesse no tempo de Asafe, e não no tempo de Deus. Somente no santuário ele pôde ver que Deus controla completamente o relógio do tempo e o calendário da prestação de contas. No santuário, Asafe também descobriu que seu verdadeiro problema não era com os ímpios, nem mesmo com Deus, mas consigo próprio. Ele havia centrado sua atenção apenas na injustiça da vida, ao invés de focar nAquele que tem o controle de tudo – o Deus Todo-Poderoso que promete a Sua justiça perfeita para os ímpios – e assim ele permitiu que seu conflito íntimo o privasse do conforto e da paz que a fé traz consigo.
A honestidade crua com que Asafe descreve-se a si próprio é exemplar, reconhecendo que não tinha razão alguma para ficar irado ou expressar uma indignação pretensamente justa, nos versos 21-22: “Quando o coração se me amargou e as entranhas se me comoveram, eu estava embrutecido e ignorante; era como um irracional à tua presença”. Ele agora via que quando estava com o coração angustiado e sentia inveja, agia como um grosseiro insensato, como um animal irracional, e que esta nova percepção significava um início de sabedoria nas suas atitudes.
Os versos seguintes, 23 e 24, são uma bela admissão da plena suficiência de Deus na vida de todos os crentes: “Todavia, estou sempre contigo, tu me seguras pela minha mão direita. Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória.” Quando ele encontrou no santuário a magnífica visão de Deus, ficou cheio de gratidão e de confiança nEle, e teve a certeza de que Ele estará sempre conosco, e que não existe maior fonte de coragem do que a certeza de que Ele nunca nos deixará nem nos desamparará. Compreendeu também que Deus vai sempre nos sustentar, vai sempre nos guiar por todo o caminho para casa com o Seu conselho – isto é, por meio do Espírito Santo e da Sua Palavra – e por fim vai receber-nos com glória no lar que Ele nos prometeu, para estarmos para sempre com Ele. Maravilhosa promessa para quem vive neste mundo caído!
Mas o que Asafe aprendeu com suas lutas? Em primeiro lugar, no verso 25, que Deus é o mais importante na vida, e que ele portanto tinha tudo de que precisava: “Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra.”
Em segundo lugar, no verso 26, que Deus é toda a força de que necessitamos, por isso é vã toda a tentativa de buscar em nós mesmos a solução para questões que são de Sua exclusiva alçada: “Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre.”
Em terceiro lugar, no verso 27 Asafe entendeu que é preciso que tenhamos consciência de que Deus quer ser tão justo quanto misericordioso: “Os que se afastam de ti, eis que perecem; tu destróis todos os que são infiéis para contigo.” Ele lembrou que teve inveja dos ímpios e de sua prosperidade, que depois lutou contra as desigualdades aparentes da vida, e até chegou ao ponto de achar que tinha vivido para Deus inutilmente. No final, entretanto, compreendeu que estas questões devem ser entregues exclusivamente a Deus, que na Sua infinita sabedoria e misericórdia saberá agir, no Seu tempo, com absoluta justiça.
Em quarto lugar, no verso 28 ficou claro para ele que Deus se aproxima daqueles que se aproximam dEle: “Quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no Senhor Deus ponho o meu refúgio, para proclamar todos os seus feitos”. Tanto a responsabilidade de Asafe quanto a nossa não é julgar o mundo ou tentar trazer justiça onde predomina a injustiça. A realidade bíblica e teológica é que Deus – em sua infinita sabedoria, onipotência e misericórdia – detém o controle de tudo, mesmo quando sofremos e não sabemos o por quê.
É preciso também lembrar que uma das razões básicas para a prosperidade dos ímpios no mundo é o fato de eles estarem em perfeita sintonia com as coisas da esfera terreal, dominada por satanás. Seus objetivos, métodos de ação, relacionamentos e atitudes estão perfeitamente identificados com aquilo que o mundo quer, valoriza e compreende. Espiritualmente, trevas atraem trevas, luz atrai luz, e quando a luz dissipa as trevas, podemos então perceber a glória de Deus em sua soberana e irresistível prevalência.
O que possibilita que enxerguemos além das circunstâncias que nos cercam, é conhecer e confiar na bondade de Deus, e nunca imaginar que Ele não tem o controle absoluto e total de tudo, ou que não é justo, ou que não se preocupa com tudo o que acontece. E para adquirir esta perspectiva, é preciso conhecer profundamente a Deus, para então podermos confiar nEle. É preciso também que saibamos que o relacionamento, a comunhão com Deus, está fundada e cresce em nós por meio da adoração, o que insere o eterno nas questões diárias da vida, e nos lembra que Ele não conduz Seus planos de acordo com a nossa agenda.
A Bíblia não promete a nós cristãos uma vida isenta de lutas, de sofrimento, de dificuldades, de perdas, de aflições e de decepções. Mas ela promete aos que creem em Cristo que terão um Fiel Companheiro de jornada que irá ajudá-los, encorajá-los e dar-lhes forças em todo o caminho. Nunca nos esqueçamos do que Deus nos diz em Hebreus 13.5-6: “… De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei (…) O Senhor é o meu auxílio, não temerei; que me poderá fazer o homem?”
Pai Grandioso, que como Asafe possamos compreender que Tu és a verdadeira justiça, e tudo trazes sob o controle de Tuas soberanas mãos; que nada somos ou podemos sem Ti; que o Teu amor infinito é a garantia de que sempre teremos – seja qual for a circunstância – os cuidados de que necessitamos nesta passagem por este mundo de desigualdades e injustiças, até que estejamos conTigo para sempre. No nome de Cristo Jesus, Teu Filho Amado que nos trouxe a salvação. Amém.
22 de janeiro de 2022
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