Perplexidade
O mundo de hoje deixa-nos cada vez mais perplexos e desconcertados. Como compreender tantas mutações sociais, tantos modismos, tanto progresso tecnológico, tantas religiões, coexistindo com tanta violência, crueldade, desamor, imoralidade, desesperança, corrupção e egoísmo? Como viver como verdadeiros cristãos com a tão grande derrocada dos valores éticos, morais e espirituais a que o mundo chegou, nos envolvendo e oprimindo? Como conviver com tanta relatividade de conceitos sobre Deus, sobre a verdade, sobre religião, sobre sexo e família?
John Stott em seu livro Os Cristãos e os Desafios Contemporâneos, parte da premissa básica de que o compromisso primeiro do cristão, face às perplexidades atuais, é com a Bíblia, mas insiste em que não podemos deixar de considerar que a segunda obrigação que nos cabe é com o mundo onde Deus nos colocou, embora ambos possam frequentemente parecer conflitantes.
Por um lado, alguns argumentam que a Palavra de Deus é incompatível com a cultura ocidental, pelo fato de que há um lapso de tempo de séculos – em certas questões até de milênios – entre aquilo que a Bíblia registra e os dias de hoje, e que ouve mudanças (alguns chamam de progresso) irreversíveis ao longo do tempo, que impedem a aplicação dos conceitos emitidos nas Escrituras; de outro lado estão aqueles cristãos que anseiam por uma fidelidade absoluta ao que a Bíblia ensina, não admitindo concessões de qualquer espécie, entendendo que se deve viver segundo os valores do passado, mesmo que isso implique em ignorar os novos desafios e a nova contextualização que nos apresenta o mundo moderno.
O respeitado teólogo, evangelista e escritor então pondera: “O cristão tem uma condição livre, que lhe permite não se render à antiguidade nem à modernidade. Antes, tenho procurado com integridade submeter tudo à revelação de ontem, dentro das realidades de hoje. Não é fácil aliar lealdade ao passado com sensibilidade ao presente. Porém, este é o nosso chamado cristão: viver, sob a Palavra, no mundo.”
O século 21 – em que 1% da população mais abastada do planeta detém igual volume de riqueza que os restantes 99% – tem apresentado uma vasta gama de complexos problemas mundiais que revelam paradoxos de difícil resolução: rápidos avanços tecnológicos contrastam com a persistente pobreza; mais que pessoas e cidadãos, hoje em dia nos transformamos em meros consumidores que compõem uma sociedade materialista sem objetivos relevantes, enquanto muitos não têm o que comer, vestir ou morar, estão desempregados e à mercê da violência; a crescente globalização aproxima cada vez mais as pessoas, porém ricos e pobres estão gradativamente mais distantes uns dos outros; a corrupção endêmica em vários países da América Latina, África e Ásia tem ampliado a pobreza, a mortalidade infantil, a criminalidade e as desigualdades sociais e econômicas de maneira dramática, ao mesmo tempo que políticos e autoridades honestos rareiam, e quando surgem e tentam agir de forma ética são defenestrados; os problemas ambientais ameaçam de forma crescente nossa própria existência futura e a do planeta; os conflitos com base religiosa tomaram conta do mundo sob o manto horripilante do terrorismo, gerando, entre outros problemas gravíssimos, ondas de refugiados que, fugindo dos bombardeios contra os terroristas em sua terra natal, muitas vezes perdem suas vidas tentando emigrar para países do Ocidente, justamente os países por causa de quem foram forçados a abandonar suas casas, e que agora recusam-se a abrigá-los; os tráficos de drogas, de armas, de animais e de pessoas, tornaram-se grandes e lucrativos negócios internacionais, destruindo sociedades inteiras pelo mundo afora; a ruína da família como instituição – mormente nos países ocidentais – tem levado a graves disfunções do tecido social, e o desrespeito à vida humana como dom de Deus, tem franqueado tanto a destruição da vida por meio do aborto e da eutanásia, quanto a sua tentativa espúria de criação através de técnicas de genética e clonagem.
A Bíblia registra que no passado outros filhos de Deus já se sentiram atônitos como nós em suas respectivas eras, e então lembramos o exemplo de Asafe, grande levita na Casa do Senhor em Israel e um dos principais músicos do rei Davi, autor de doze salmos, entre eles o Salmo 73. Este salmo, que expressa toda a perplexidade que Asafe sentia na sua época (em torno do século X a.C.), revela certa analogia com o nosso atual estado de espanto, como podemos constatar nesta paráfrase: “Embora crendo que Deus é bom para as pessoas que têm corações puros, houve um tempo em que quase tropecei e caí, por pouco abandonando Seus retos caminhos porque, ao ver o sucesso e a felicidade dos orgulhosos e maus, sentia inveja deles. Para eles a vida parecia tranquila e sem preocupações, sempre fortes e gozando de boa saúde, nunca passando pelos problemas e dificuldades do comum dos mortais. Exibiam seu orgulho como se fosse uma joia, e apesar de ricos, ainda assim seus olhos desejavam tudo que seus corações imaginavam. Perversos por natureza, falavam com arrogância de suas maldades e mentiras, e o povo confuso os admirava e procurava sua orientação, aceitando tudo o que diziam. Então me perguntava: será que foi à toa que eu me esforcei para não pecar e permanecer puro? Afinal, como resultado da minha retidão só obtive sofrimento e problemas durante toda a vida! Era realmente muito difícil entender o sucesso de pessoas que desprezavam a Deus!”
Mas o Senhor, desenvolvendo Seu propósito irretocável em tempo sempre perfeito, trabalhou poderosamente no coração de Asafe dando-lhe discernimento,“Até que um dia, no templo, entendi o triste destino reservado a essa gente. Deus os colocou num caminho bastante escorregadio, para que eles vão deslizando até cair na mais completa ruína, sendo totalmente removidos da Sua presença. Quando meu coração ficou revoltado contra Deus, agi como um irresponsável, como um louco ignorante, mas apesar disso, Ele sempre esteve ao meu lado, me guiando com a Sua sabedoria durante esta vida e sei que depois me receberá ao Seu lado na glória. Aqui na terra, o que mais desejo é a Sua presença, e minha saúde pode acabar, meu coração fraquejar, mas Deus é a minha fortaleza, a minha eterna riqueza, e quem se afastar dEle será castigado com a morte eterna! É maravilhoso viver bem perto de Deus, testemunhando as grandes coisas que Ele fez e continua fazendo por mim!”
Aleluia! Deus em Sua sabedoria incomparável, nos expõe à observação da aparentemente irrefreável porém seguramente injusta prosperidade dos poderosos e maus e à sua corrupção falsamente vitoriosa, o que muitas vezes se apresenta como tentação através da qual testa nossa força de caráter e fidelidade a Ele. O objetivo divino complementar: ensinar-nos a depositar total confiança nEle e no Seu agir muitas vezes incompreensível por situar-se na dimensão divina, infinitamente mais elevada que aquela que conseguimos apreender, como nos mostra com precisão em Isaías 55.9 (ARA), dizendo que “… assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos”.
Então gradualmente, à medida que amadurecemos, que O conhecemos mais e mais e vamos desenvolvendo os elevados valores que Ele deseja que cultivemos, vai instilando em nossa alma Suas verdades insofismáveis, mostrando que a fatuidade, a leviandade, a veleidade de uma enganosa vida de benesses e regalias egoístas e irresponsáveis – ontem e hoje perseguida por tantos não importam os meios – conduz a um único fim: a destruição eterna.
Louvamos ao Senhor porque, como discípulos de Jesus Cristo, podemos fazer nossas as palavras de Paulo em 2 Coríntios 4.8-10 (ARA), quando o apóstolo diz que “Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos; levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo.”
Tal como Paulo, sob a ótica humana não conseguimos frequentemente ver solução para os males que nos rodeiam e afligem, mas igualmente como ele podemos ter a certeza de que o Senhor jamais permitirá que o mal seja finalmente vitorioso, pois é o mesmo apóstolo que assegura em 1 Coríntios 15.57 (ARA) que “Graças a Deus, que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo”, e nos deixa esta exortação veemente e definitiva no versículo seguinte: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão”.
Pai de misericórdia, embora saibamos que Tu tens tudo sob Teu controle perfeito e soberano, por vezes falta-nos a fé, deixamo-nos influenciar pelos eventos trevosos do mundo, e custa-nos aceitar o descalabro crescente que vemos suceder-se dia após dia ante nossos olhos estupefatos. Ajuda-nos, Senhor, porque ansiamos pelo Novo Céu e Nova Terra que prometestes, mas tudo parece tão distante… Dá-nos, ó Pai, longanimidade para esperar, perseverança para prosseguir Te servindo, aumenta-nos a fé, e que Teu Santo Espírito venha nos consolar, dar-nos a força e a segurança que só podemos encontrar em Ti, na certeza de que Cristo logo voltará. No Seu nome precioso oramos com gratidão. Amém.
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