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O ARGUEIRO E A TRAVE

O que é um argueiro? É simplesmente um cisco que muitas vezes levado pelo vento entra no olho provocando desconforto e ardência. A trave, no entanto, é um objeto de escala incomparavelmente maior, consistindo de um enorme pedaço, geralmente de madeira, empregado em uma estrutura, por exemplo, de um telhado. Isto é, enquanto o argueiro é medido, quando muito, em um par de milímetros, a trave é mensurada, quase sempre, em vários metros.

 

Foi com essa imagem proposital de exagero e desproporção que Jesus mostra quão absurda e patética é a atitude que muitas vezes temos de julgar o outro apontando nele uma falha, um defeito, que não apenas temos também, mas que em nós mesmos é incomparavelmente maior. Assim sendo, ser muito severo como as faltas dos outros e indulgentes em excesso como nossos próprios erros é um claro sinal de hipocrisia, o que Deus abomina.

 

A famosa peça de William Shakespeare, “Medida por Medida”, cuja ação se passa em Viena, apesar de ser considerada uma comédia, tem uma trama que aborda com propriedade algumas importantes verdades, em especial a nossa tendência de julgar os outros. Os personagens principais são Ângelo, um homem severo que fica responsável pela cidade enquanto o mandatário, o duque Vicêncio, finge viajar mas fica por perto aquilatando até que ponto teria chegado a degradação moral na urbe. Ângelo, obedecendo às instruções do duque, torna mais duras as leis e condena à morte Cláudio, que havia tido um filho fora do casamento, mas Isabela, sua irmã, intercede por ele lembrando a Ângelo de que o juízo de Deus é imparcial e que, como condenador, ele também precisaria da misericórdia que Deus proveu em Cristo. Ângelo concorda em poupá-lo, com a condição de que Isabela durma com ele, o que ela recusa, e os acontecimentos se sucedem com a imoralidade de Ângelo sendo revelada, o que faz reverter a culpa, tornando então o acusador passível da pena de morte em lugar de Cláudio. Mas o duque acaba perdoando a todos, e assim triunfam a justiça e a misericórdia cristãs que do começo ao final da peça Shakespeare ressalta, empregando o que Jesus expõe como exemplo do pecado e do farisaísmo humano, ao admoestar em Mateus 7.1-5 por meio de Sua lógica invariavelmente irretorquível a que “Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também. Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que está no teu próprio? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão”.

 

O Senhor nos adverte para que não julguemos para não sermos igualmente julgados, não apenas porque, quando julgamos implicitamente convidamos o(s) outro(s) a agir contra nós da mesma forma, mas porque, além disso, nos expomos a que o próprio Deus nos julgue, uma vez que nosso julgamento muitas vezes é falho por desconhecermos as circunstâncias e todos os fatos que levaram alguém a cometer um ato que reprovamos.

 

Por isso, antes de mais nada, devemos julgar a nós próprios, como filhos de Deus, se de alguma forma nos tornamos culpados de pecados ou de uma vida marcada pelo erro e a negligência quanto às coisas do alto, confiando que por crermos no Senhor Jesus Cristo estamos isentos de juízo e não examinamos a nós mesmos. É por esse motivo que em 1 Coríntios 11.31, Paulo pondera sabiamente: “Porque, se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados”.

 

Contudo, julgar a nós próprios é desconfortável, penoso, a maioria das vezes não conseguimos ser imparciais conosco mesmos, e quando somos bem sucedidos nessa tarefa sentimos o nosso ego ferido e tendemos a desviar o foco de nossas próprias mazelas para voltarmos nossos olhos críticos a outrem. Com este novo alvo em mente, tentamos convencer-nos de que estamos interessados apenas na justiça e no que é correto, que não desejamos ser injustos com as pessoas, que não queremos criticá-las de forma destrutiva e que nossa preocupação é exclusivamente com a verdade. No entanto, se estivéssemos realmente interessados na autenticidade das coisas, deveríamos antes julgar a nós mesmos, e como não o fazemos confirmamos que não estamos na realidade interessados na verdade, contrariando o que D. Martyn Lloyd-Jones certa vez afirmou com exatidão: “O artista verdadeiramente grande é sempre o mais severo crítico de si mesmo”.

 

Nenhum de nós pode se considerar permanentemente livre de ter um argueiro ou até mesmo uma trave no olho, afinal somos todos pecadores contumazes, sujeitos, portanto, às consequências das transgressões que cometemos. Jesus diz que a nossa condição é tão precária que nos incapacita a emitir juízo sobre o próximo, porque muitas vezes falsamente damos a entender que estamos preocupados somente com o seu bem, com suas faltas, com seus erros, com seu pequeno defeito, com o argueiro, com o pequeno cisco que está no seu olho e que desejamos tirar. O problema é que não temos a capacidade fazê-lo por se tratar de um processo muito delicado que ficamos impedidos de realizar por causa da imensa trave cravada em nosso próprio olho. Somos como um oftalmologista cego pretendendo extrair um cisco do olho de alguém.

 

É por essa razão que o Senhor nos condena pela hipocrisia de fingirmos estar seriamente interessados em ajudar o outro, quando na verdade nosso propósito é condená-lo, é diminui-lo e, o que é o mais grave de todo o processo, ficando intimamente alegres por descobrir e apontar o defeito alheio. Então Jesus nos repreende dizendo: se você quer realmente ajudar a outra pessoa, precisa, antes de mais nada, retirar a trave que existe fincada em seu próprio olho e que impede que veja com clareza para ajudar a seu irmão.

 

A partir dessa lição exemplar de Jesus, que fique claro para nós que a atitude julgadora, crítica e censuradora que pode estar nos movendo é um tipo de pecado da pior espécie que nos torna culpados de impiedade, de falsidade, de desamor e de falta de graça. Por isso precisamos com urgência e para o nosso próprio bem, em toda e qualquer circunstância, agir como Jesus exemplificou, no que podemos ser auxiliados pelas palavras extraordinárias de Paulo em 1 Coríntios 13 sobre o componente essencial que nos falta: “Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei”.

 

Por esse motivo oremos rogando a Deus que nos transforme em pessoas mais assemelhadas a Seu Filho, e examinemos nossas atitudes julgadoras e críticas para com as outras pessoas sem receio de enfrentar a verdade que pode nos libertar desse terrível mal, na árdua operação de retirada da trave que jaz em nosso olho.

 

Só quando nos virmos como realmente somos e admitirmos o juízo que sabemos que merecemos, deixaremos de julgar os outros de forma automática, precipitada e pecaminosa, e passaremos a nos dedicar a purificar a nós mesmos em nossa conduta, assim nos possibilitando que, com graça, amor e respeito, possamos ajudar a retirar o minúsculo argueiro do olho daquele que Deus colocar em nosso caminho.

 

E o que Ele deseja é que sejamos instrumentos Seus na realização da cirurgia delicada mas necessária para libertar esse órgão que é o mais sensível do corpo humano, o olho, o que exige de nós meticulosa suavidade e cuidado extremo, lembrando que o olho é uma metáfora que Jesus emprega para referir-se à nossa alma, a porção mais delicada e sensível do nosso ser, que está a requerer que nos revistamos de mais compaixão, humildade e tolerância, sempre com a consciência plena de que somos tão imperfeitos quanto aquele a quem desejamos ajudar.

 

Conscientes, pois, de nossa imensa precariedade, devemos nos dispor a ser por Deus usados para agir em favor do outro com profunda singeleza, total humildade, grande compreensão e extrema generosidade, para que, “… seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo…”, como Paulo exorta em Efésios 4.15.

 

Senhor amado e bendito, Tu sabes o quanto somos imperfeitos, pecadores e injustos, mas Tu lês o nosso coração e conheces nossa firme disposição de sermos mais assemelhados a Teu Filho, embora estejamos cientes da difícil empreitada e do longo caminho a percorrer. Porém, como assegura a Tua Palavra, se Tu “és por nós, quem será contra nós?” Pois cremos firmemente que dificuldades não são obstáculos intransponíveis para nós Teus filhos, pois estamos em Cristo, e nEle “… somos mais que vencedores… ”. E Te louvamos, ó Pai, lembrando que Hebreus 12.6 assevera que “… o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe”, uma vez que Teu propósito precípuo é conduzir-nos à perfeição e por essa razão julgas os nossos pecados e defeitos enquanto vivemos aqui no mundo, preparando-nos para a vida conTigo na glória eterna dos céus. É com esta certeza inabalável que oramos agradecidos em nome de Jesus. Amém.

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