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TRANSCENDÊNCIA
Durante a nossa vida terreal, algumas vezes somos desafiados a navegar pelas águas tempestuosas das aflições inesperadas, cheias de sofrimento e dor. Então constatamos que por nós nada conseguiremos se não buscarmos um auxílio mais elevado, um poder que está acima de tudo o que nos cerca; em suma, se não entregarmos tudo ao Deus Todo-Poderoso que criou a nós e a tudo o que existe, que dirige o universo infinito com perfeição absoluta e à nossa vida desde sempre com amor inexcedível. Porém, se teimosamente nos mantivermos aferrados às questões meramente humanas, não nos resta esperança de prosseguir ilesos e vencedores a caminho do amanhã de nossa jornada.
Nossa pátria verdadeira está nos céus, almejamos ansiosos por ela, mas não podemos esquecer de nossos compromissos e deveres para com a vida na terra; somos cidadãos dos céus, porém não é razoável desconsiderar a importância inestimável, tanto das lutas que enfrentamos aqui, quanto da maneira como as enfrentamos, alertados pela sábia ponderação de Paulo em 2 Coríntios 4.17-18: “Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas”.
John Stott em seu livro Por Que Sou Cristão, afirma que uma das aspirações básicas do ser humano é a busca por uma realidade que esteja acima da ordem material, ou seja, a transcendência, que alguns teólogos consideram como o “princípio básico que liberta de toda forma de reducionismo”. Ilustrando sua assertiva, Stott cita Mateus 4.4, quando Jesus afirma que “Não só de pão viverá o homem…”, lembrando que “… somos mais do que corpos materiais carentes de comida; somos seres espirituais carentes de Deus, carentes de transcendência”.
A vida de Jesus, dos Seus discípulos após Pentecostes e dos heróis da fé que conhecemos na Bíblia – como José, Moisés, Jó, Elias, Ester, Davi, Paulo – são exemplos marcantes de transcendência de atitudes e visão: cuidavam das coisas do mundo, sim, porém sempre agindo pela ótica sublime e pelos valores elevados do céu. A conhecida passagem do acalmar de uma tempestade por Jesus no Mar da Galileia é uma clara demonstração do poder amoroso e infinito que dEle emanava, mas que pode ser nosso também, embora dentro dos limites de nossas infinitamente maiores limitações. Figuradamente podemos dizer que, enquanto o barco de Jesus estava ancorado nos céus, o dos discípulos àquela altura inicial do aprendizado com o Mestre, ainda estava fundeado em terra.
Só uma profunda transcendência pode nos tornar servos úteis e fiéis do Senhor, porque esta é a única forma de sermos relevantes na Sua obra. Jesus, o nosso modelo e alvo supremo, foi o ser mais transcendente que já passou pela terra, e todos os Seus seguidores precisam ser também, cada um em seu grau pessoal de transcendência: quanto mais elevado for, tanto maior será sua semelhança a Cristo e, portanto, sua utilidade, fidelidade e relevância no Reino.
Mas devemos considerar também que transcendência depende de fé, como Jesus tantas vezes exemplificou, como no episódio da tempestade, em que os Evangelhos sinóticos de Mateus, Marcos e Lucas, com cada um enfatizando um aspecto diferente, relatam de forma semelhante o milagre realizado pelo filho de Deus. Este evento divino nos oferece um exemplo extraordinário do agir maravilhoso de Jesus, sempre presente e socorrendo os Seus, homens frágeis como nós e ameaçados por forças poderosas que encontram-se muito além de qualquer capacidade humana de superação.
John MacArthur em seu livro sobre Jesus, Uma Vida Perfeita, elaborou uma oportuna harmonização dos textos dos três Evangelhos sinópticos, complementando-os e integrando-os. Cabe aqui lembrar que, ao longo da história do cristianismo, vários Evangelhos harmonizados foram produzidos, revelando-se muito úteis para a compreensão plena de várias passagens bíblicas.
Com o mesmo princípio compositivo empregado por MacArthur – diferenciando-se pela utilização da versão bíblica ARA e tendo como texto-base a passagem de Marcos 4.36-41, complementada pelos relatos paralelos de Mateus 8.23,25-26 e Lucas 8.23,26 – resulta a seguinte passagem harmonizada: “ Mc Naquele dia, sendo já tarde, disse-lhes Jesus: passemos para a outra margem. E eles, despedindo a multidão, o levaram assim como estava, no barco; e outros barcos o seguiam. Mt Então, entrando ele no barco, seus discípulos o seguiram. Lc Enquanto navegavam, ele adormeceu. E sobreveio uma tempestade de vento no lago, Mc e as ondas se arremessavam contra o barco, de modo que o mesmo já estava a encher-se de água, Lc correndo eles o perigo de soçobrar. Mc E Jesus estava na popa, dormindo sobre o travesseiro; eles o despertaram e lhe disseram: Mestre, não te importa que pereçamos! Mt Senhor, salva-nos! Mc E ele, despertando, repreendeu o vento e disse ao mar: Acalma-te, emudece! O vento se aquietou, e fez-se grande bonança. Mt Perguntou-lhes, então, Jesus: Por que sois tímidos, homens de pequena fé? Mc como é que não tendes fé? Eles, possuídos de temor e admiração, diziam uns aos outros: Quem é este que até aos ventos e às ondas repreende, e lhe obedecem?”
Assim ficam reunidos em um único texto todos os detalhes dos três relatos, obtendo-se uma história completa cuja autoria divina claramente se confirma, e onde se destacam alguns marcos essenciais, cada um colocando em nossos corações questões importantes para meditarmos:
Propósitos
O que levou Jesus a cruzar o Mar da Galileia naquela oportunidade? Certamente em primeiro lugar a necessidade de prosseguir realizando sinais que comprovavam que era o Filho de Deus, ao demonstrar o Seu poder sobre a natureza, a Sua glória sobre as águas revoltas, acalmando-as; além disso, àquela altura de Seu ministério não faltavam pessoas necessitadas que O buscavam como, por exemplo, o homem endemoninhado que curaria e que esperava-O do outro lado daquelas águas.
Por que muitas vezes duvidamos que os propósitos de Jesus são sempre irretocáveis, e que quando O convidamos para ir conosco em nosso barco da vida, podemos estar absolutamente seguros de que Ele cuidará de nós, nos protegerá contra todo o mal, contra todas as tormentas que podem vir a nos atingir e contra todos os intentos do inimigo de nossas almas?
Sono
É provável que, após um dia estafante de trabalho, o corpo de Jesus estivesse a exigir descanso, o que ademais atesta a Sua verdadeira humanidade. Então, após zarparem, o Senhor sentiu sono e dormiu de cansaço, confiando que aqueles que estavam com Ele – por serem pescadores experientes naquele lago – estariam totalmente aptos para a condução segura do barco. Sobretudo, Jesus confiava plenamente que o Pai estaria com Ele tanto em terra quanto na água.
Talvez Ele também estivesse submetendo os discípulos a uma prova de fé e paciência: depois de terem privado da Sua companhia, aprendido com Ele e presenciado Seus milagres, será que confiariam verdadeiramente nEle quando submetidos a situações de risco pessoal extremo?
Até os dias de hoje Jesus continua a curar, a fazer milagres, sinais em nossa vida que na maioria das vezes nos passam despercebidos, e se porventura nos damos conta de que algo comprovadamente extraordinário aconteceu, mesmo assim lamentavelmente não nos ficam dúvidas? E o quanto confiamos no Deus trino nos momentos desafiantes que enfrentamos, embora Ele tenha nos alertado que devemos enfrentar dificuldades por sermos Seus seguidores? Por outro lado, damos o devido valor ao fato de Ele ter nos outorgado responsabilidades várias porque confia em nós?
Tempestade
A súbita e terrível tempestade, típica do Mar da Galileia, assolava violentamente o barco em que estavam, o pânico instalou-se entre os discípulos que despertaram Jesus e Ele, com apenas uma ordem, acalmou a procela, numa demonstração clara de que o modo correto de termos os nossos temores contidos, é levando-os a Cristo e colocando-os diante dEle, que então tudo fará.
A atitude dos discípulos não se assemelha à nossa quando as tormentas da vida nos afligem e nos fazem desesperar? Mas, quando o Senhor finalmente vem em nosso auxílio, não ficamos admirados com a manifestação amorosa de Seu poder, ao mesmo tempo em que nos surpreendemos e até nos culpamos por não termos “a priori” confiado nEle como devíamos?
Domínio
A vontade de Cristo é serenar todas as tempestades que nos ameacem, enquanto que o objetivo de satanás é provocá-las e fazê-las recrudescer para nos derrotar. Enquanto ao longo da história do cristianismo o ser humano rebelde e descrente frequentemente tem se recusado a obedecer às ordenanças do Senhor, as forças da natureza, os demônios, as doenças e até mesmo a morte, obedecem ao Seu comando irresistível, pois Ele veio com poder insustável trazer paz à terra!
Por que então nós, simples mortais, insistimos – incrédulos, inseguros, cheios de dúvidas – em desobedecer às ordens divinas de insuperável poder, sabendo que são sempre perfeitas e permanentemente visam o nosso bem?
Repreensão
Após repreender as forças da natureza, – talvez mobilizadas pelo maligno para tentar impedir Jesus de chegar à outra margem para realizar novos milagres – Jesus censura os discípulos pela demonstração explícita de falta de fé nEle. Como acontecia com Seus primeiros seguidores, talvez a nós também falte o discernimento de que a fé é uma concordância firme e uma confiança inabalável em toda a revelação divina, e é desta qualidade de fé que Jesus espera que nos apropriemos e usemos.
Olvidamos de que aqueles como nós que, pela fé, – como é exaustivamente exemplificado no Livro de Hebreus – receberam a salvação eterna preparada por Cristo, podem com humilde confiança recorrer a Ele também para obterem livramentos terrenos? Não compreendemos que Jesus não nos censura por dirigirmos insistentes preces a Ele, mas sim por nos inquietarmos com nossos temores, deixando-nos abater pelas tormentas da vida, esquecendo que Jesus está conosco no barco?
Admiração
Os discípulos estavam perplexos, maravilhados com tudo o que viam: acostumados com o mar, jamais tinham visto uma tempestade se acalmar tão subitamente! Perceberam então como Jesus é tão extraordinariamente poderoso, sábio, cheio de graça, e ao mesmo tempo tão pleno de amor! Tomaram consciência de que Aquele que consegue até mesmo comandar os ventos e os mares pode fazer qualquer coisa, não há o que esteja fora de seu alcance e controle no mundo e na vida dos Seus!
Tudo o que Jesus fazia tinha mais que um propósito simplesmente temporário e localizado, e este evento miraculoso revela que, onde quer que ocorra, qualquer tormenta se acalma na presença do Príncipe da Paz; a presença de Jesus serena a tormenta das tentações que, se enfrentadas por nós sozinhos nos vencerão, mas que o comando de Cristo impõe a calma que desvanece o seu poder maligno; a chegada de Jesus amaina as tormentas das paixões, em especial naqueles de temperamento sanguíneo ou colérico, que recebem a virtude do domínio próprio; com Jesus ao lado, as tormentas do pesar e da dor recebem o bálsamo do amor e da consolação que produzem quietude e brandura.
Por tudo isto, nos dias tempestuosos como os que atravessamos presentemente é sábio e prudente buscar a transcendência em nosso viver. Isto não significa que devemos ter uma atitude de alienação no que tange às coisas do mundo; ao contrário, apesar das peias que nos jungem à existência terreal, é mister elevarmo-nos sobre a mundanidade que impera inspirados na lição da águia quando defronta-se com uma tormenta. Diante da ameaça ela voa com intrepidez para grandes alturas onde – pairando acima do temporal – encontra a perfeita bonança que lhe permite planar suavemente, desfrutando de tempos de descanso, refrigério, harmonia e paz. Certamente é como Deus espera que façamos, buscando-O confiantemente, e então, em amorosa resposta o Pai nos concederá refúgio inabalável em Seus braços poderosos, pois só Ele é o nosso abrigo seguro em qualquer circunstância, como o salmista canta no Salmo 46.1-3,10: “Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações. Portanto, não temeremos ainda que a terra se transtorne e os montes se abalem no seio dos mares; ainda que as águas tumultuem e espumejem e na sua fúria os montes se estremeçam. Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus…”.
Senhor Bendito, dá-nos força, sabedoria, coragem e discernimento para não permitirmos ser afetados, abalados ou conspurcados por qualquer tipo de externalidade com origem neste mundo degradado, seja ela pandemia ou pandemônio que o diabo use para tentar nos envolver, dominar e destruir, e mantenhamo-nos firmemente fixados, em inabalável transcendência, nos Teus elevados, perfeitos e eternos valores. Certos de que Tu ouves as nossas súplicas, é no nome puro e santo de Jesus Cristo, que está acima de todo nome, que oramos agradecidos. Amém.
30 de abril de 2020
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